Escrito por Eduardo Sá Quarta, 27 Abril 2011 (Pais e Filhos)
1. Sou contra o direito à greve! Não contra o direito a todas as greves, é claro, mas contra as greves em que as famílias vivem há tempo demais. Greve aos fins-de-semana, greve às tardes de sábado com chá e torradas, greve às visitas aos amigos e greve às viagens. Greve aos gestos de carinho, greve à tagarelice e greve aos mimos. Greve às perguntas embaraçosas e aos porquês. Greve ao direito de andar nas nuvens e ao brincar. Greve ao «já te disse hoje que gosto de ti?». Greve aos abraços e às festinhas. E greve ao direito de deitarmos a cabeça num colo de confiança e ao direito de, quase sem querermos, fecharmos os olhos, de seguida.
Às vezes, este estado (entre a greve de zelo e a greve geral) das famílias, parece ser resultado dum grupo de especuladores que têm dominado o Banco do Tempo. Passo a explicar…Na verdade, todas as actividades laborais compram o nosso tempo. Mas especulam, de seguida, como se fossem donos dele, vendendo-o devidamente tributado com taxas, pagamentos por conta e com índices de risco. Às vezes, os especuladores do Banco do Tempo vendem-nos o direito a habitar o nosso coração como se ele deixasse de ser nossa propriedade e se transformasse numa espécie de time sharing onde a inflação fossemos nós.
2. Como parece acontecer muito por aí, também a dívida pública familiar ao Banco do Tempo não pára de aumentar. E, para lhe fazerem frente, as famílias oferecem juros tentadores aos filhos quando eles não reclamam a devolução das economias de tempo que confiam aos seus pais. A liberalização das taxas de juro tem sido de tal ordem que, para os filhos, os juros a seis meses no Banco do Tempo chegam a valer um novo modelo de telemóvel, topo de gama, acompanhado por saídas dois dias por semana, sempre até mais tarde. E há pais que, comprometidos pela gestão dos activos no Banco do Tempo que realizam, oferecem – desde muito cedo – juros a 10 anos que fazem com que as crianças pareçam magnatas das más maneiras e passem de principezinhos a pequenos ditadores, de modo a que nunca sejam tributadas quando gritam num restaurante, enquanto chapinham nos pratos da sopa. Às vezes estes pais, pelo modo como moralizam a vida dos outros (enquanto encolhem os ombros e sorriem, embaraçados, entre birras que vão dos acepipes à sobremesa) fazem lembrar alguns economistas que nunca antecipam as
crises mas que não perdem uma oportunidade para as comentar, como se os nossos recursos para a compreensão do mundo precisassem deles para os transformarem no FMI da nossa sensatez. Acredito que estes pais que dão juros de muitos por cento ao mês acreditem que os
fi lhos acreditam que eles serão a Dona Branca dos pequeninos. Numa versão mais urbana e mais clean, eles acham que a industrialização educativa se combate com paraísos fiscais de regras. É claro que o sucesso do liberalismo com que se opõem à sua má gestão do Banco
do Tempo faz com que, no final, os responsáveis pelo inferno da sua política educativa nunca seja de quem a executa mas, simplesmente, dos… mercados.
crises mas que não perdem uma oportunidade para as comentar, como se os nossos recursos para a compreensão do mundo precisassem deles para os transformarem no FMI da nossa sensatez. Acredito que estes pais que dão juros de muitos por cento ao mês acreditem que os
fi lhos acreditam que eles serão a Dona Branca dos pequeninos. Numa versão mais urbana e mais clean, eles acham que a industrialização educativa se combate com paraísos fiscais de regras. É claro que o sucesso do liberalismo com que se opõem à sua má gestão do Banco
do Tempo faz com que, no final, os responsáveis pelo inferno da sua política educativa nunca seja de quem a executa mas, simplesmente, dos… mercados.
3. Ora, deve ser por terem trocado Deus por um Estado que pensa por elas, que as famílias foram aceitando este totalitarismo esperarem que o Estado pense por eles que os pais se vão vergando a uma ideia industrial de crescimento como se cada pessoa fosse um Ford T e o direito a construir a vida de forma artesanal violasse a normalização dos projectos e dos sonhos que alguns moralizadores escolhem para nós.
4. As crianças são quem mais, felizmente, boicota o direito à greve dos pais que, geralmente, uns em relação aos outros, vivem (geralmente) em serviços mínimos. As crianças são quem mais, felizmente, se insurge contra esta discrepância de direitos entre os pequenos e os crescidos. E com toda a razão! Quando os pequenos não comem a sopa há quem o considere uma violação do acordo colectivo das famílias; quando os pais a evitam isso está previsto nas respectivas cláusulas de excepção. Quando as crianças dizem asneiras isso merece sanções e coimas; quando elas são ditas pelos pais isso tolera-se como se, dum momento para o outro, eles se transformassem num sindicato dos juízes. Quando as crianças ficam agitadas são hiperactivas; sempre que os pais ficam insuportáveis é porque são vítimas do stresse.
Ora, entre défices do Banco do Tempo e as cláusulas de excepção nas relações entre os filhos e os pais, resta às crianças seguirem o exemplo dos pais. E fazerem greve.
Proponho, pois, que – no próximo ano – o direito à greve esteja previsto do código do direito das crianças. Greve ao trabalho infantil, digna da revolução industrial, que faz com que as crianças trabalhem 12 horas por dia cinco dias por semana. Greve à descapitalização da sabedoria das crianças que entram no jardim-de-infância sábias e singulares e saem das universidades mestres por grau académico, bolonhentas, normalizadas e enfadonhas. E greve à ideia de que a escola não serve para educar para valores como a solidariedade e o trabalho, para a tolerância e para compaixão mas, somente, para a tecnocracia do pensamento e para a burocracia das ideias. Greve às aulas de substituição, sempre que elas forem uma forma de as manter distraídas, e greve às aulas se elas não forem acompanhadas por recreios. Greve aos trabalhos de casa, sempre que isso os transforme numa espécie de confederação inimiga do direito a brincar. Greve ao respeito pelos adultos, sempre que eles pareçam divididos entre alguns conselhos como «precisas de te distrair» e as epidemias atípicas de défices de atenção em que acreditam.
5. As crianças, no próximo ano, têm direito a ser crianças. E a terem quem olhe por elas. E a reconhecerem na família quem melhor interpreta o seu interesse superior. E a terem quem lhes diga «mostra que sabes dançar!» de cada vez que lhes exige que tenham opinião. E a serem resmungonas. E dorminhocas. E a actuarem só para os pais no meio das centenas de olhos das pessoas da festa de Natal. E a terem dores de barriga sempre que a escola as empanturra de conhecimentos sem as considerar singulares e sem lhes perguntar «porquê?».
As crianças, no próximo ano, têm direito a proibirem todas as greves de zelo de todas as famílias. O que só se começa quando, no Banco do Tempo, não houver direito a especuladores, nem a liberalismo de regras nem a direitos diferentes para responsabilidades iguais.
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