25/08/11

Amor de Mãe (Eduardo Sá)


 Este texto tocou-me muito e apesar de ser longo penso que tem de ser partilhado!

(I wish i could translate this text in many languages)
 
1. Há, acerca do amor, muitos slogans. Mas sobre o amor de mãe há muitos mais. Convencionou-se que todas as grávidas ficam bonitas e luminosas, no olhar. E que não estão nem gordas nem panentas. (Ascendem, unicamente, a uma condição celestial.) Diz-se que uma gravidez será, obrigatoriamente, um «estado interessante». E que uma grávida nunca fica redondinha mas, antes, que traz o «rei na barriga». Convencionou-se que o amor de mãe será um nível avançado do instinto maternal e que, por isso, não há mulher que não exulte com a maternidade. Porque (como, por vezes, se supõe), mais do que ser feliz, todas as mulheres sonham ser mães.
Ora, não é verdade que todas as grávidas fiquem bonitas e luminosas. Não é verdade que tragam o «rei na barriga» e que não se sintam, muitas vezes, ali entre o feio e o desinteressante. E não é verdade que todas as mulheres suspirem por ser mães (sobretudo, em consequência das filhas que foram). E que o amor de mãe seja um topo de gama do amor, ao qual todas as mulheres, movidas por um sexto sentido (que, supostamente, as equipa de base) não deixam de chegar.

2. Começando pelo princípio, nem todas as mulheres são boas pessoas. No sentido de serem bonitas, bondosas e verdadeiras. Ao mesmo tempo. E isso faz toda a diferença quando se trata de amar. Muitas são violentas no olhar e nos gestos e, por mais que se contenham, sempre que se sentem frustradas, falam com picos no tom da voz. E magoam com palavras e com os olhos. Muitas são opacas no que sentem. Ou angustiadas e agitáveis. Ou narcísicas demais. Ou, de tão tristes, a lonjura dos seus olhos só agride. Sempre que uma mulher se perde nos sofrimentos e, por despeito, os vive só em si (pode ser, até, vistosa e sedutora) mas não é nem amável nem amante. E pode não ser, só por isso, nem boa pessoa nem boa mãe. (Imagino que, a esta hora, esteja a comentar, para si, que poucas mulheres serão perfeitas. E não foi bem isso que eu disse. Quis, antes, dizer que não é verdade que todas as mulheres sejam assim tão bonitas, por dentro, como gostaríamos. E que, se for assim, por mais que, para bastantes, uma gravidez puxe pelo que têm de melhor, nem mesmo para essas isso garantirá que se tornem, a partir daí, pessoas mais bonitas. E, muito menos, boas mães).
E, depois, nem todas as mulheres convivem com alguém que corporize o seu amor. Muitas têm junto de si a pessoa que se aventurou, em primeiro lugar, a pedi-las em namoro. Muitas não se reconhecem nos gestos e na sensibilidade do pai dos seus filhos (e, com condescendência, presumem que ele gostará delas, unicamente, "à sua maneira"). Muitas adormecem os filhos, anos a fio, não tanto para os sossegarem dos
maus sonhos mas para se pouparem do pesadelo com quem foram dormindo. Muitas estão longe de ver no pai das crianças alguém que (também ele) seja amável e que seja amante. Em resumo, a maioria das mulheres sente-se mal amada. E, por melhor pessoa que ela seja, mãe mal-amada é pior mãe.

Para piorar, é verdade que a maioria das gravidezes são acidentais. E que, grande parte delas, são (num primeiro momento) indesejadas. Talvez por isso, uma gravidez comece mais depressa no útero que na cabeça duma mãe. Sendo assim, uma gravidez na cabeça quase nunca terá nove meses. Tudo isso porque entre saber que está grávida, escutar o coração do bebé, vê-lo (entre interferências) numa ecografia, e senti-lo, aos
pontapés, na barriga, passa algum tempo. À luz dos tempos duma gravidez, grande parte dos bebés será, para o coração da mãe, um bocadinho prematuro. Ora, amor de mãe, resignado ou contrafeito, não é bem amor. É um dia de bruma à procura do sol.

3. E, depois, há os sobressaltos duma gravidez. Uma análise, ou outra, assim-assim. O desejo de viver só para a gravidez e o de querer, sobretudo, trabalhar.
Tudo ao mesmo tempo. As dúvidas de desejar o bebé e o sufoco de as guardar só para si. Ou, quando muito, de falar delas pelo cansaço com que se lamuria, pelo apetite que dispara ou pelas dores de cabeça ou das costas que nunca desistem. E as outras mulheres que, ora acarinham quem está grávida, ora trazem um episódio, mais ou menos anguloso, que (se era para proteger) só atormenta. E a mãe e a sogra da grávida que não exultaram, intensamente, com a notícia da gravidez, e que - nos comentários, no nome do bebé e nas roupinha que escolhem - parecem jogar sempre na tripla quando era de esperar que fossem carinhosas, isentas e parciais. E o pai do bebé, mais terno com ele do que a mãe. E a sexualidade na gravidez que balança entre o desejo, à procura da paixão, e a cisma que há um outro, por ali, mais ou menos a ver.

E há o parto. E a sensação que ninguém avisa sobre quase nada. E que, provavelmente, ninguém percebe que não era preciso que uma mulher se visse afastada de parte do seu erotismo e, desde logo, privada de pêlos púbicos. E, a seguir, se sentisse profundamente sozinha, entre dores e contracções e mais dores, de seguida. E, alguém que lhe grita, no frenesi duma sala de partos: «Pare de puxar!», quando só se queria fugir, muito depressa, para longe dali. E, depois, há um: «Está quase! Vá! Só mais um bocadinho!». E o mundo parece que pára. E há um gemido que se atravessa. E o sentimento que não é verdade que um bebé seja um menino Jesus. É a mãe que, a partir dali, se sente Deus só para ele. E o pai do bebé, que chora, com vergonha. Mas que não ama quem mais devia ser amada. E, de repente, tudo aquilo que sabíamos sobre o amor, afinal, era verdade.

Entretanto, tudo palpita mais devagar. E o bebé adormece. E já não está nem vermelhusco nem inchado. E suspira - «meu Deus, ele suspira!» - de mãos fechadas. E o olhar fica extasiado ao vê-lo a dormir. «Estará a respirar?» Mas, de seguida, há uma enfermeira que ralha em vez de ensinar. E uma greta no peito, que dói. E ele engasga-se! E, será, que «o leite presta? Ora, mãe, não diga asneiras!". («Mãe?... Mas eu não sou uma função! Só queria colo!...»- pensa ela.) E, depois, há as horas das visitas. «Onde está o meu filho mais velho?
Ninguém mo trouxe?» Ele aí está: «0lha o mano, meu querido!» (Mas quem aceita passar de 100% de mãe para 30, mal medidos?) E há um entrar e sair que nunca pára.

E o pai do bebé? Porque é que ele só vem com as visitas e não reside ao pé dos dois?

E, de seguida, de regresso a casa, as pessoas entram e saem, para ver o bebé. E há um irmão que, logo que viu o aninhado, juntinho da mãe, pára (de espanto) e foge, a seguir. E a sensação de que o bebé não pesa, nos braços. E o mesmo sentimento de estar mais sozinha por dentro, muitas vezes, outra vez. Como é possível que o amor seja celestial no meio da dor?

4. Eu acho que há quem fale da depressão pós-parto como se fosse um estado que atinge 10% das mães. Mas não é verdade. 10% fala dele. Os outros 90 vivem-no com vergonha. Como é possível que uma mulher durma, meses a fio, em franjas de duas horas e, apesar disso, não deixe de ter um ar imaculado de bondade? Como é possível que se sinta esgotada - e mais ou menos em falta - e, ao mesmo tempo, ser empática e atenta?

Como é possível ser indiferente aos mimos que escasseiam e que, dantes, seriam (sobretudo) para si?
Como é possível afastar todos os episódios assim-assim do crescimento se, de repente, os sente a cair, um a um, sobre a cabeça? Como é possível não ficar alegre e triste quando o bebé, dormindo como um anjo - logo que a mãe se afasta, para tomar um café - desperta e grita, como quem diz: «Mas isto... faz-se?» E como é possível não se pôr num «descubra as diferenças» entre um amor, à margem da necessidade das palavras, entre mãe e bebé, e as palavras onde falta o amor, dos seus pais? Como é possível fracturar a vida, que corria depressa, e haver sempre alguém que não deixe de imaginar esse período (esgotante!) como «férias de parto»?

Nada mais do que um filho nos ajuda a crescer. E ninguém mais do que ele contribui para que um casal se separe. «Não me lembro da última vez que fui ao cinema», é só uma das fórmulas com que os pais, depois dum nascimento, falam do modo como foram deixando de namorar. E entre a casa, o trabalho e os filhos cada dia parece ter pouco mais de meia hora. Mas porque é que o amor de mãe tem de ser, tantas vezes, sofrido, assim?

5. Não, não é verdade que o instinto maternal seja um requisito de base de todas as mulheres. Porque nem sempre todas as mães são boas pessoas e são bonitas. E não é verdade que, partindo dele, todas as mulheres sejam capazes de chegar bem perto do amor de mãe.

Porque nem sempre são amáveis e amantes. Nem sempre são amadas. E nem sempre um bebé chega só depois de ser chamado. E tudo isso, mais ou menos enovelado, não é amigo do amor.
E não é verdade que o instinto maternal seja um equipamento de opção, unicamente, para meia dúzia de homens. Se todos nascemos competentes para o amor, todos nascemos para ser mães. Assim nos amem e assim sejamos amadores. Assim possamos ser bonitos, bondosos e verdadeiros. E convivamos com quem seja, quase sempre, quase todo o nosso amor.

6. É tão difícil o amor de mãe! É tão frágil e tão fugaz, tantas vezes. E tão surpreendente, quando quase nada o faria supor. E é tão sagrado. Sempre! (Eu acho que são os bebés quem melhor é capaz do amor de mãe. Mas não devo dizê-lo. Suponho eu. São eles quem nos resgata para amar à margem da necessidade das palavras. E quem comprova que tudo aquilo que sabíamos sobre o amor, afinal, era verdade Mas, também acho, que se não fosse o amor de mãe muitas pessoas nunca teriam, nem de longe, uma referência para o seu amor. E se não fosse ele, depois de tantos maltratos que tantas sofreram, ao longo da História, o mundo não se teria movido - por entre todo o mal - para a vida e para a esperança, para a verdade e para o amor. Se a Humanidade cresceu a culpa é das mães. Mesmo que muitas delas suponham valer mais pelos serviços que prestam que pelo seu coração dentro dos gestos.)

Eu acho que a primeira função dum ser humano é ser mãe. Reconheço. Mas também acho que o mundo seria um lugar melhor e mais bonito se cada pessoa fosse capaz (dum pouco mais) do amor de mãe!

Crónica de Eduardo Sá (Revista Pais e Filhos)

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